Discurso pronunciado por S. Majestade El Rei o Senhor D. Pedro V por ocasião da distribuição de prémios na Escola Real de Mafra, em 26 de agosto de 1858, à qual presidiu também S. Majestade a Rainha a Senhora D. Estefânia [fl. 2]
São tantas as razões que podem aconselhar a criação de uma escola, que seria não acabar enumerá-las todas.
Quando, pela última vez, distribuí aos alunos da Escola de Mafra os prémios, que conquistaram com a aplicação e bom comportamento, falei de algumas. Hoje acrescentarei outras, não todas, que não é dado tê-las presentes a um tempo, mas aquelas que me pareceram mais ponderosas.
Para ser sincero direi ainda que não foram estas as que realmente inspiraram o pensamento da criação deste presepe da redenção intelectual das novas gerações, o qual por si pouco valeria se a cegueira de pai me não levasse a crer que ele vale muito pelo espírito da sua instituição.
Mas se as razões de que hoje me ocuparei não têm realmente um direito de paternidade sobre esta Escola, podem elas reclamar o direito de adoção. Por terem vindo tarde, por terem acompanhado a reflexão, não são elas menos fortes que as que se geraram da ideia um pouco vaga, nascida mais do coração que da cabeça, de que era um serviço abrir mais uma escola, sobretudo arrancar ao Estado uma parte desse domínio, que se justifica e ao mesmo tempo se deplora.
As sociedades humanas apresentam-se-nos irremissivelmente debaixo de três aspetos diferentes. [fl. 2 v.]
Vemo-las lutar, pela sua inércia, contra os esforços do poder para lhes fazer aceitar os melhoramentos, reclamados mais ainda pelo parentesco moral dos povos entre si, que pelas necessidades mesmas das sociedades. Esse estado avizinha-se da barbárie, se é que ele não é a barbárie mesma.
Depois, as boas ideias, à força de serem repetidas, começam a ser escutadas, aquilo que anos antes era utopia, subitamente deixa de sê-lo; aceita-se passivamente o que passivamente se rejeitava, e a civilização começa a identificar-se com os hábitos populares, com a índole mesma dos povos.
Como se operam essas revoluções; até que ponto sejam (sic) o resultado da ação do poder, que se envergonha de ficar atrás do seu tempo, ou da sociedade, que começa a sentir esse pudor, que é a maturidade para uma ação mais energicamente progressiva - não é aqui lugar de dizê-lo. Nem seria vergonha ignorá-lo, quando tantos o explicam diversamente.
É difícil discriminar o que, nos resultados da vida social, pertence a cada uma das duas tendências que, nas sociedades que se chamam povos, se digladiam, se exterminam e se vencem temporariamente, e que eternas como a humanidade mesma, renascem quando as crêramos mortas.
De um resultado, cada povo conserva no seu desenvolvimento, [fl. 3] no que chamamos a sua civilização, um caráter de individualidade, diante do qual falha tantas vezes a razão do legislador demasiadamente impaciente. De outro lado, cada povo participa da natureza comum da humanidade, com quem mais frequentemente caminha o legislador. Se a sua natureza própria, por vezes, o conserva no atrasamento, a humanidade o arrasta consigo, e lhe ordena que progrida. Daí os frequentes desacordos entre a condição real dos povos e a civilização que lhes formoseia a superfície; entre a massa que espera mas não crê, e as classes e os indivíduos que creem e esperam.
Ninguém contesta que os esforços, ainda extemporâneos dos governantes por comunicar movimento à inércia mesma, têm por efeito dar à sociedade, no momento da sua maioridade, os instrumentos de transformação que, aliás, ela mesma teria de construir. Não se simulam contudo oficialmente fenómenos da vida social, nem se vacina a civilização em um corpo mal disposto a deixar-se contaminar do bem e do mal que a civilização em si encerra.
O que aqui reconheço como facto, aceito-o facilmente como teoria.
A civilização existe, para mim, no estado em que a sociedade [fl. 3 v.] e o poder contendem entre si para se substituírem e se excluírem mutuamente no cuidado dos interesses da comunidade.
A esse estado desejo que cheguemos, e tenho a simplicidade de acreditar que as escolas - quando as escolas preencherem em Portugal a sua grande missão religiosa, moral e política - hão de formar a sociedade em que eu espero viver os meus últimos dias. Volver-se-iam em consolação os trabalhos, os dissabores (e, ser-me-á permitido acrescentar, as desesperações?) que custa o ser procurador dessas crianças de quem um escritor eminente disse “que já são homens”.
Não sei como se compadeçam o desfavor real, que o ensino popular encontra no fundo das declamações, que lhe prometem nova vida, e a convicção tão universal - tão triste para nós e tão lisonjeira para as que nos hão de suceder - da necessidade de quebrar a continuidade moral entre a antiga e a nova humanidade. E, contudo, essa obra tentada e malograda no século xviii, ou se há de servir da escola primária, ou é mais um desses sonhos desanimadores com que se iludem os homens.
Tentamos, disse eu, o que o século xviii tentara, mas entre uma e outra época a diferença é grande.
Substituímos à filosofia que exalta para abater, a [fl. 4] religião que nos humilha e nos atenta; e em vez de pretendermos comprimir os novos homens nos antigos moldes, entregamo-los às noções despretensiosas com que os lançamos no mundo. Entendemos que instruir é educar, e não nos parece necessário lisonjear pretensões de classes por meio de uma distinção a que não reconhecemos razão de ser. Formando o espírito, formamos o coração, e não nos lembramos de fazer da escola, que instrui com a doutrina um perfeito sucedâneo da família, que instrui pelo exemplo.
Entendemos, e creio que entendemos bem, que pelo que pode ensinar a escola primária começa e acaba a ciência humana e que, nas noções com que daí sai o mancebo, ele encontra - tolere-se a expressão - o gérmen e como que a síntese do que podem ensinar as Academias. Por isso, as boas escolas primárias dispensam, para muitos, as Academias.
Não me compete dizer bem da Escola de Mafra. Eu, que confio na regeneração do povo, que se diz rude, porque ainda não rompeu o invólucro de qualidades puras e nobres, não posso rejeitar os sufrágios que a minha obra recolhe com o número crescente de Alunos. E quando estes por tal forma se encarregam do louvor de seus Mestres, não poderei hoje dispensar-me de repetir o que há meses dizia dos que deram [fl. 4 v.] o ser ao meu pensamento?
Alunos da Escola de Mafra! Foi a Rainha quem desejou distribuir-vos hoje as recompensas que alguma coisa significam, quando tocam a poucos de entre muitos.
Não perdeis em terdes mais uma Mãe que, como as vossas, folga com as vossas primeiras satisfações, satisfações de orgulho, se não vos lembrasse que os talentos são mais acaso do que merecimento.
Mafra, 26 de agosto de 1858
D. Pedro V